Esta inédita grisaille em aquarela encontra-se numa coleção
particular de São Paulo e é de autoria de um desconhecido
artista viajante francês do século XIX.
Na inscrição em sua base, lê-se:
Intérieur d’un Ménage Brésilien / Les Sieurs blancs, un
Miroir, une Table, une Madone, le Mari / se fait ôter les
(palavra indecifrável) par une négresse, la Maîtresse / de
la Maison veut se faire ôter les (palavra indecifrável) par
une négresse libre / qui (se) refuse.
O artista anônimo em questão não é de qualidade comparável a
Rugendas ou a Taunay ou a outros dos grandes artistas
europeus que vieram ao Brasil no século XIX. O que não
significa negar-lhe um próprio talento.
Mas o que confere a esta obra todo seu valor de documento
histórico é o registro minucioso de um interior de uma casa
de fazenda brasileira, provavelmente de São Paulo ou do Rio
de Janeiro, testemunho extremamente raro e precioso.
Além disso, a inscrição que acompanha o desenho –
infelizmente ainda não inteiramente decifrada – atesta a
vontade de inventário cultural da cena presenciada e o
espírito antropológico de que o artista está imbuído ao
registrar o fenômeno da escravidão no Brasil e as tensões
por ele geradas.
Eis a tradução da inscrição:
Interior de um lar brasileiro
Os Senhores brancos, um espelho, uma mesa, uma Madona, o
marido se faz tirar as [palavra indecifrável: algo no pé]
por uma negra; a dona da casa quer se fazer tirar as
[palavra indecifrável: algo no pé] por uma negra livre, que
se recusa.
Podem-se notar três elementos fundamentais nessa
iconografia:
(1) A diferença entre as roupagens e entre o estatuto da
escrava e da liberta, cuja nova condição jurídica permite se
recusar a fazer um trabalho de provável higienização dos pés
dos donos da casa, obviamente considerado indigno de uma
pessoa livre;
(2) O mobiliário e os objetos de decoração de uma casa de
fazenda oitocentista, provavelmente do sudeste brasileiro,
em especial com a presença de uma imagem pintada de uma
Madona ao trono com o Menino Jesus. A simples presença de
uma pintura ou de uma gravura pintada e não de uma imagem
esculpida num altar, como era a regra, é algo notável. Nada
há de similar no Museu de Arte Sacra de São Paulo ou em
outros museus do gênero. Além disso, sua composição,
evidentemente arcaica em sua frontalidade absoluta e em sua
forma rigidamente piramidal, remete a um esquema compositivo
quatrocentista. É difícil imaginar que uma obra do gênero
seja de produção local, o que coloca a questão da circulação
dessas imagens pictóricas ou gravadas no Brasil rural
oitocentista, questão de que se dispõe de pouca
documentação.
(3) A escrava desenhando um arvoredo mostra um tipo pouco
usual de atividade doméstica exercida por escravos. Ela
mostra afetuosamente seu desenho à criancinha da casa, mas o
gesto de mostrá-lo não indica que sua atividade seja
propedêutica, já que a criança anda ainda com auxílio de um
andador e, portanto, tem pouco mais de 1 ano. A atividade de
desenhista da escrava é aqui uma atividade lúdica,
espontânea e autônoma. Ela documenta de modo inequívoco uma
prática doméstica facultada aos escravos que bem se coaduna
com a importância crucial de sua contribuição à pintura do
Oitocentos brasileiro, ao menos fora do Rio de Janeiro, onde
essa atividade vinha então, aos poucos, se
institucionalizando.
Luiz Marques
9/X/2013