Em uma inscrição na base, redigida quando da doação da obra ao Museu, em 1731, lê-se:
MEDUSAE IMAGO IN CLYPEIS/ ROMANORUM AD HOSTIUM / TERROREM OLIM INCISA/ NUNC CELEBERRIMI/ STATUARIJ GLORIA SPLENDET/ IN CAPITOLIO/ MUNUS MARCH:/ FRANCISCI BICHI CONS:/ MENSE MARTIJ/ ANNO D./ MDCCXXXI.
“A cabeça da Medusa, outrora colocada como ornamento dos escudos dos romanos para aterrorizar os inimigos, hoje, glória de um celebérrimo escultor, refulge no Capitólio, ofertado pelo marquês Francesco Bichi, Conservador, no mês de março do ano do Senhor 1731”
A fonte textual antiga mais prestigiosa no século XVII são as aventuras de Perseu narradas por Ovídio no livro IV das Metamorfoses, em especial, no que concerne à Medusa, vv. 765-803. Mas ao representar Medusa viva e com semblante de sofrimento, Bernini parece inventar uma dimensão diversa das representações antigas e modernas de Medusa, qual seja o da própria “metamorfose” do monstro em pedra, por obra do escultor, com todas as ressonâncias meta-artísticas e “barrocas” nela contidas.
Bernini transforma assim o mito da metamorfose em pedra causada pelo olhar da Medusa em um signo de sua capacidade de fixar na pedra a transitoriedade dos estados de ânimo. Esse jogo de inversão entre duas metamorfoses – a mítica e a escultórica – fora já enunciado em 1619 em um poema (I, 272) do La Galeria de Giovan Battista Marino, que dá a palavra à própria Medusa:
Non so se mi scolpi scarpel mortale,
o specchiando me stessa in chiaro vetro
la propria vista mia mi fece tale.
(Não sei se me esculpiu cinzel mortal, / ou refletindo-me em claro espelho / a própria vista me fez assim)
(Cf. http://en.museicapitolini.org).
De resto, outro poema de Marino em sua Galeria (XI) vale-se de análoga imagem para cantar a “Cabeça da Medusa” em um escudo (rotella, de Caravaggio, então na Galeria do Grão-duque da Toscana (hoje nos Uffizi).
A datação da obra de Bernini oscila entre 1636c., data sugerida por Wittkower, e 1644-1648, mais amplamente aceita. Nos dois casos, Bernini encontrava-se bastante isolado, no primeiro por se encontrar gravemente enfermo, e no segundo por seu breve afastamento da corte pontifícia no início do pontificado de Inocêncio X.
O fato de que a Medusa se tenha provavelmente originado de uma iniciativa do próprio escultor, que a executa para seu próprio deleite – à semelhança, por exemplo da Verità de 1646, criada “per suo studio e gusto” – parece reforçar esta interpretação da obra como uma orgulhosa afirmação de si como antonomásia da arte da escultura.
Luiz Marques
20/07/2011
Bibliografia:
1955 – R. Wittkower, Bernini. The sculptor of the Roman Baroque. Londres: Phaidon, cat. 41, p. 259
http://www.museicapitolini.org/museo/restauri/restauro_del_busto_di_medusa_di_gian_lorenzo_bernini