“A natureza como um templo cristão. Essa é uma das mensagens centrais do romance Atala, ou os amores de dois selvagens, a qual a pintura de Girodet soube bem acompanhar.
Lançado em 1801, o livro obteve sucesso imediato por congregar diversos elementos apreciados pelo público: exotismo, misticismo e sensualidade.
Atala, filha de um europeu e uma índia, envenena-se para não ceder ao desejado amor de Chactas – pois prometera à mãe, em leito de morte e voto de Nossa Senhora, manter-se virgem. Foi o que fez, mesmo à custa de sua vida.
Atala morta ou moribunda é a cena mais representada. Os pintores a compuseram sempre nos moldes de um tableau vivant, invariavelmente acordes à religiosidade de Chateaubriand e à concepção do romance como propaganda do cristianismo renovado.
Girodet (1767-1824) expôs o quadro no Salon, em 1808. Ele combina duas cenas: 1) a vigília noturna de Chactas e padre Aubry, o “”solitário””, ao corpo de Atala; e 2) o funeral, pela manhã, sob uma ponte de pedra. Eis o texto de Chateaubriand em tradução portuguesa oitocentista e na voz do indígena Chactas:
“”Trespassado de dôr, e suspirando como se meu peito quizesse estallar, prometti a Atalá de abraçar algum dia a Religião Christãa. A este espectaculo o Solitario levantando-se com hum ar inspirado, e estendendo os braços para a abobada da gruta: ´He tempo, gritou elle, he tempo de chamar a Deos a este lugar!´
Apenas tinha pronunciado estas palavras quando huma força sobrenatural me obriga a cahir de joelhos, e me inclina a cabeça para os pés de Atalá. O Padre abre hum lugar secreto, onde estava guardada huma Urna de ouro, cuberta com hum véo de seda, e prostrado a adora profundamente.
A gruta pareceo repentinamente illuminada: ouvem-se nos ares as palavras dos Anjos, e a harmonia das harpas celestes, e quando o Solitario tirou do Tabernaculo o Vazo Sagrado eu acreditei ver ao proprio Deos sahir do seio da montanha””.
O quadro, assim como o texto, não é notadamente marcado por linhas exóticas; Atala e Chactas sequer possuem fisionomias indígenas. Decerto elas importavam menos do que a caracterização cristã, sendo esta a verdadeira protagonista de ambas as obras.
Girodet, ainda assim, cogitou conceber os cabelos de Chactas ao modo dos nativos americanos (conforme podemos ver nos esboços pertencentes à National Gallery de Ottawa e ao Cabinet des Dessins do Louvre), terminando por pintá-los soltos, longos e ondulados, dando não só mais pesar à cena como também mais envolvimento ao casal.
Atala, por sua vez, enrolada num manto branco, bastante ajustado ao corpo, não possui nada de selvagem e parece dormir tranquila, enquadrando-se perfeitamente na equação sono-morte, profusa nas artes do século XIX.
Embora o quadro de Girodet não seja o primeiro do tema (Claude Gautherot expôs sua versão em 1802), ele é sem dúvida o mais célebre, dentre os inúmeros que lhe seguiram. Mas qualquer que seja a representação visual, todas possuem em comum o acento religioso, o que deu a oportunidade de retratar a morte de Atala com a licença para se contemplá-la.
Sobre o equilíbrio entre o místico e o erótico do livro, Mario Praz pontuou aspectos que podemos aplicar à tela de Girodet. Praz observou que Chateaubriand explorou bem o erotismo idílico mais ou menos como Bernardin de Saint-Pierre fizera em Paulo e Virgínia (1788), beneficiando-se do “”fascínio pela cristandade primitiva”” e conferindo uma “”auréola de inocência à agitada matéria sensual””.
Praz observou também que o escritor envolveu de poesia e “”dignidade sentimental o amor incestuoso entre irmão e irmã””, fazendo “”culminar a paixão dos amantes com a descoberta de vínculos de fraternidade espiritual””.
Tanto na literatura quanto na pintura, Atala inspirou muitas imagens de outras donzelas mortas ou moribundas, dentre as quais Ofélia, Elaine, Lady de Shalott e principalmente Minnehaha, irmã de Atala na poesia e na arte norte-americanas.
Alexander Miyoshi
13/02/2011
Bibliografia:
1801 – F.-R. de Chateaubriand. Atalá ou os amores de dous selvagens no deserto. Bahia: Typog. de Manoel Antonio da Silva Serva, 1810.
1930 – M. Praz, A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica. Campinas: Editora da Unicamp, 1996, p. 114.
1978 – D. Wakefield, “”Chateaubriand´s ´Atala´ as a Source of Inspiration in Nineteenth-Century Art””. The Burlington Magazine, 120, 898, p. 13.
2005 – A. Sefrioui, O Guia do Louvre. Catálogo resumido de obras do acervo. Paris: Musée du Louvre editions / Éditions “