“Este tão copiado auto-retrato de Leonardo da Vinci (1452-1519) continua cercado de interrogações não-respondidas, entre as quais inclusive a de sua verdadeira identificação.
Em primeiro lugar porque se trataria do único auto-retrato de Leonardo da Vinci, o que impede todo termo de comparação. As descrições propostas por Vasari e por Lomazzo parecem bem de acordo com a força quase mítica desta encarnação olímpica da sabedoria, mas Vasari e Lomazzo não conheceram Leonardo.
Lomazzo, por exemplo, afirma, em seu Idea del Tempio della Pittura (1590), que o artista tinha: “”cabelos longos e as sobrancelhas e a barba tão longos que ele parecia encarnar a nobreza do estudo, como outrora o druida Hermes ou o Antigo Prometeu””. Mas a descrição confirma de tal maneira o desenho, que é legítimo supor ser, na realidade, inspirado por ele.
Em segundo lugar porque Leonardo teria em 1512 / 1513, data do desenho, apenas 60 anos, e deveria ser na realidade ainda um homem cheio de energia, capaz de viver mais sete anos extremamente ativos, após a queda da corte de Milão, o que inclui, por exemplo, reinserir-se na corte de Leão X em Roma e, em seguida, na de Francisco I, na França.
Em terceiro lugar porque não se compreende facilmente como Rafael tenha-se baseado neste desenho de Turim para homenagear o pintor ao figurar seu “”Platão”” no afresco da Escola de Atenas* na Stanza della Segnatura no Vaticano. De fato, se a semelhança entre o desenho e o afresco é indubitável, tal como bem o percebeu em 1926 Adolfo Venturi, a cronologia (como lembra Arasse) é problemática.
Pois a figura de Platão comparece já no cartão preparatório para o afresco, na Ambrosiana, de 1510 / 1511, um ou dois anos antes da execução do desenho de Turim e dois ou três anos antes da chegada de Leonardo a Roma, ocorrida em 1513. A fisionomia de Leonardo que Rafael podia recordar remontava portanto há 5 ou 6 anos antes, quando Leonardo não tinha ainda nem 55 anos.
Isto posto, pode-se in extremis, para tentar conciliar os elementos em jogo, conceber três possibilidades:
(1) em 1510, Leonardo teria enviado de Milão a Rafael, a seu pedido, um desenho – um auto-retrato idealizado como exemplum sapientiae – para que figurasse como “”Platão”” no afresco da Escola de Atenas. O desenho conservado em Turim seria eventualmente este desenho ou uma versão autógrafa similar a ele;
(2) atingido pelo impacto da Escola de Atenas, em sua chegada a Roma em 1513, Leonardo pode ter desenhado seu auto-retrato segundo o “”Platão”” de Rafael, talvez para melhor se inserir no ambiente neoplatônico da corte pontifícia, entre Júlio II e Leão X;
(3) O desenho de Turim e o afresco de Rafael derivariam ambos de um modelo antigo comum.
Tais conjecturas (a segunda e a terceira já aventadas por Arasse) são demasiado destituídas de pontos de apoio para não serem consideradas arbitrárias. Elas parecem, contudo, salvo engano, as únicas a serem deixadas de pé, em face das dificuldades acima apontadas.
Elas têm em comum o fato de apontarem para uma única conclusão: o desenho de Turim não é um auto-retrato stricto sensu de Leonardo, mas verossimilmente uma persona do artista, isto é, seu auto-retrato intelectual ou espiritual.
Luiz Marques
02/11/2010
Bibliografia
1997 – D. Arasse, Léonard de Vinci, Paris, p. 28″