Localização inventarial: Gift of J. Pierpont Morgan, 1917
(17.190.44)
Este pequeno ícone de devocão privada ocupava
originariamente o centro de um tríptico cujas abas, que o
ocultavam quando fechadas, representavam presumivelmente
teorias de santos, tal como se observa, por exemplo, no
Tríptico Borroidale*, igualmente constantinopolitano e
também de meados do século X, hoje conservado no British
Museum (272 x 157 mm).
A obra apresenta diversas peculiaridades iconográficas,
entre as quais o tratamento em ronde-bosse da figura
do Cristo, o baldaquino trabalhado como um pergolado que
abriga a cena, a presença, ainda rara no século X, dos três
soldados que tiram na sorte a posse do manto do Cristo (tal
como no precedente Evangelho de Rabbula*, de 586 da
Laurenziana) e, sobretudo, a imagem da cruz fincada no
ventre de Hades, que a inscrição em grego explicita: “a cruz
implantada no estômago de Hades”.
Embora imagem e inscrição aludam evidentemente à Anástasis,
isto é, ao episódio da liberação do inferno de personagens
venerandas do Antigo Testamento e, em geral, à idéia de que
a morte de Cristo na cruz redime o homem e o libera do
inferno a que o condenara o pecado original, é inevitável o
paralelo com as figurações funerárias de Hércules que libera
Alceste do Hades*, devolvendo-a a Admetos, seu marido, por
quem ela havia dado a vida, tal como no afresco das
Catacumbas de Via Latina, de meados do século IV.
Raras vezes como nesta cena quase brutal de morte de um deus
por outro, presencia-se com tal veemência o fenômeno geral
do recalque da velha religião pela nova. Curiosamente, a
figura de Hades toma aqui a forma de uma divindade fluvial,
talvez por contaminação com os rios que conduziam ao Hades,
tematizados por Platão, no Phedon.
Luiz Marques
09/05/2010
Bibliografia
H. C. Evans (org.) The Arts of Bizantium. The Metropolitan
Museum of Art Bulletin, LVIII, 4, p. 46