A ideia da superioridade da Virtù sobre a
Fortuna, apregoada por Maquiavel no “Príncipe” (1513)
e adequada ao primeiro quarto do século XVI, durante o qual
havia ainda margem, ao menos em tese, para a iniciativa
política de parte dos Estados italianos, será invertida,
sobretudo, após a batalha de Pavia de 1525 e o saque de Roma
de 1527.
Já em 1526, o Triompho di Fortuna do matemático
Sigismondo Fanti Ferrarese (In la città di Vinegia per
Agostino da Portese MDXXVII ad instantiam di Giacomo Giunta
mercatante Fiorentino, mas existe uma primeira edição de
1526) enfatiza esta inversão, ao tematizar o futuro como um
jogo sobre o qual o homem não tem controle, como mostra
Baldassare Peruzzi (1481-1536) neste estudo preparatório de
1526 ou 1527 para o frontispício da obra.
O sucesso do Triompho di Fortuna é precedido pelo do
Libro della ventura (1482) de Lorenzo Spirito, com
seu método similar de um jogo de prognósticos. Mas é maior
aqui a importância da astrologia – como mostra o astrólogo
sentado na base do desenho – e da simples sorte ou Fortuna,
como demonstra a posição proeminente do jovem nu com o dado.
Esta última figura e o relógio na torre no primeiro plano
remetem ambos ao mote de Heráclito, segundo o qual o Tempo
(Aeon) é um menino jogando dados.
Suportando o globo celeste está um Atlas, imitação do Atlas
Farnese, o grupo marmóreo do século II, hoje no Museo
Archeologico Nazionale de Nápoles. Vitrúvio e Plínio, entre
outros, consideravam o Titã o patrono dos astrólogos.
Este globo celeste é, porém, entendido como uma roda da
fortuna, girada por manivelas controladas por um anjo e um
demônio, simulando uma espécie de psicomaquia cristã, de
cujo desenlace dependerá a sorte do papa sentado sobre a
esfera. Como um novo Hércules cristão na encruzilhada entre
o Vício e a Virtude, este é ladeado pelas alegorias
femininas da Virtus e da Voluptas.
Roma é a cidade murada que se vê ao fundo, com seu Pantheon,
considerado na Antiguidade uma imagem terrestre da órbita
celeste, e o papa sobre a esfera é Clemente VII (1523-1534),
a quem Sigismondo Fanti dedica sua obra.
Por quase um ano, a partir de 6 de maio de 1527, a Fortuna
será impiedosa com o favor de que gozara até então a
Voluptas romana, pois Roma e seu papa serão
aterrorizados pelos mercenários, em geral de área germânica,
os lanzichenecchi, que aliam em sua irrefreável
devastação um misto de cobiça, sadismo e horror luterano
pela sede universal da Igreja.
Nestes mesmos anos, outro desenho, infelizmente perdido, de
Giorgio Vasari procura fixar uma alegoria semelhante da
onipotência da Fortuna. Vasari envia-o a Paolo Giovio, anexo
a uma carta de 4 de setembro de 1532, com a seguinte
descrição:
“Fiz um desenho que irá anexo a esta para ser entregue à Sua
Senhoria Reverendíssima [Ippolito de´ Medici], para
reverenciá-la, mais que por outra razão. O capricho da
invenção é de um cavalheiro, meu amigo, que me tem sempre
entretido nesta minha doença. Creio que vos agradará. E para
que Vossa Senhoria e o Cardeal melhor o entendeis, direi
aqui brevemente seu significado:
Esta árvore desenhada ao centro é a árvore da Fortuna,
mostrando pelas raízes que nem todas estão sobre a terra,
nem enterradas. Os ramos intrincados, aqui limpos, ali
nodosos, estão pela Sorte, que com frequência se segue e
muitas vezes na vida se interrompe. Suas folhas, todas
redondas e leves, significam a Volubilidade.
Seus frutos, como vêdes, são mitras de papas, coroas
imperiais e régias, chapéus cardinalícios, mitras de bispos,
berretos ducais, de marqueses e de condes. (…)
À sombra dessa árvore estão, em expectativa, lobos,
serpentes, ursos, bois, ovelhas, raposas, mulas, porcos,
gatas, corujas (…) e muitos outros animais, como podeis
ver. Sobre a árvore, a Fortuna, com os olhos vendados,
batendo as frutas com uma vara, as faz cair sobre a cabeça
dos animais.
E ora cai o reino papal sobre a cabeça de um lobo, e ele,
com sua natureza, vive e administra a Igreja. Da mesma
maneira, o Império cabe a uma serpente, que envenena,
destrói e envenena os reinos e desespera seus povos. A coroa
de um rei cai sobre a cabeça de um urso surtindo efeito
consoante à soberba e à fúria sua.
Os chapéus cardinalícios chovem frequentemente sobre os
asnos, que, não cuidando em nenhuma virtude, ignorantemente
vivendo, pastam como asnos e se urtam uns aos outros. As
mitras dos bispos com frequência destinam-se aos bois,
levando-se mais em conta a subserviência e a adulação que as
letras ou quem as mereceria. Caem os berretos ducais, de
marqueses e de condes às raposas, aos grifões, aos leões, de
cujas garras, malícia e soberba não se pode escapar”.
Luiz Marques
03/11/2011
Bibliografia:
1947 – R. Eisler, “The Frontispiece to Sigismondo Fanti´s
Triompho di Fortuna”. Journal of the Warburg and Courtauld
Institutes, 10.