“(continuação do comentário à imagem 4 do Laocoonte:
http://www.mare.art.br/detalhe.asp?idobra=3648)
A tríade de estátuas que ornavam aquele Cortile – o
Laocoonte, o Apolo do Belvedere e a Venus felix –
reencenava simbolicamente o mito das origens de Roma e o
retorno, sob Júlio II, a uma Idade de Ouro, tema reiterado
nos sermões de Egídio da Viterbo, orador de Júlio II, e
sublinhado pela inscrição virgiliana que pairava sobre esse
Cortile, retirada da “”Eneida”” VI, 258, servindo de
emblema àquele espaço desde ao menos 1509:
Procul este profani (Longe ficais, profanos!).
No Laocoonte, inacessível aos “”profanos””, eternizava-se
assim o pacto indissolúvel entre religião, arte e política
que constituía a essência do destino divino de Roma antiga,
renovado na Roma cristã. Não é, pois, sem propósito afirmar
que, se, no plano político-militar, o papa fomentava através
de seu próprio nome e através diversos poemas e discursos de
poetas e oradores sua corte, uma identificação com Júlio
César, no plano político-religioso, seu Cortile, e
nele em especial o Laocoonte, projetava na figura do
Pontifex Maximus a imagem de um novo rei-sacerdote de Roma,
à maneira de um Numa cristão.
É neste contexto que o grupo do Laocoonte se converterá no
vértice e no modelo tangível da excelência antiga, essa
posição de modelo único no plano da imitação artística,
equivalente à de Cícero no âmbito da imitação retórica, tal
como Pietro Bembo a reivindicava em sua resposta de 1513 à
epístola que lhe endereçara, em 19 de setembro de 1512,
Giovanni Francesco Pico della Mirandola.
É neste contexto também que Michelangelo, que conhecia a
obra tão intimamente, estudou-a. Não apenas teria sido ele,
a se crer na acima reportada carta de Francesco da Sangallo
a Vincenzio Borghini, testemunha de sua descoberta ao lado
de Giuliano da Sangallo, não apenas executou ele ao menos um
desenho da escultura, outrora na coleção de Fulvio Orsini,
não apenas a ela aludiu em diversas de suas próprias
esculturas e pinturas, como elaborou, com Cristoforo Romano,
um parecer sobre o problema das partes de que era composto o
grupo, conforme demonstra a já citada carta de 1º de junho
de 1506 de Cesare Trivulzio ao irmão, Pomponio Trivulzio:
Questa statua, che insieme co´ figliuoli, Plinio dice
esser tutta d´un pezzo, Giovannangelo romano [sic] e Michel
Christofano [sic] fiorentino, che sono i primi scultori di
Roma, negano ch´ella sia d´un sol marmo, e mostrano circa a
quattro commettiture; ma congiunte in luogo tanto nascoso, e
tanto bene saldate e ristuccate, che non si possono
conoscere facilmente se non da persone peritissime di
quest´arte
“”Esta estátua, que junto com os filhos, Plínio afirma ser
esculpida num único bloco, Giovannangelo romano [i.e
Cristoforo Romano] e Michel Christofano [i.e. Michelangelo]
florentino, os primeiros escultores de Roma, negam que seja
de um só mármore, e mostram algo como quatro emendas; mas
situadas em lugares tão ocultos e tão bem soldadas e
recobertas de estuque, que apenas pessoas peritíssimas nessa
arte podem reconhecê-las””.
Com tal parecer, inaugura-se o complexo problema do estado
de conservação do grupo no momento de sua descoberta e das
sucessivas restaurações de que foi objeto desde sua
descoberta até a de 1979, que fixou seu aspecto atual.
Como documentado no desenho anônimo do Kunstmuseum de
Düsseldorf, que porta no verso a data de 1508, e na gravura
assinada por Giovanni Antonio da Brescia –
Vejam-se: http://www.mare.art.br/detalhe.asp?idobra=2084
e http://www.mare.art.br/detalhe.asp?idobra=2085
– faltavam à escultura no momento de sua descoberta os
braços direitos do sacerdote e de um de seus filhos e a mão
direita do outro filho. A integração do braço do filho teria
ocorrido entre 1520 e 1525 a partir de um modelo em cera de
Baccio Bandinelli, e a integração do braço do Laocoonte, em
posição levantada (diversa da original), teria sido
realizada em 1532-1535 por Giovanni Angelo Montorsoli,
sob a provável direção de Michelangelo, mas a partir sem
dúvida da hipótese formulada por Baccio Bandinelli entre
1520 e 1525, em sua cópia marmórea do Laocoonte, hoje nos
Uffizi.
Relatando as circunstâncias dessa cópia, Vasari deixa, na
Vida de Baccio Bandinelli, um relato pelo qual se percebe
como o célebre grupo antigo mantinha intacto, não apenas seu
valor de parâmetro da emulação artística, mas ainda de
trunfo diplomático de Leão X em suas relações com Francisco
I, rei da França.
Veja-se esse relato e sua tradução no comentário à imagem da
cópia de Bandinelli:
http://www.mare.art.br/detalhe.asp?idobra=2086
(continua no comentário à imagem 6 do Laocoonte)”