Registro inventarial: inv. 169
O quadro é assinado “Ticianus F” e sua iconografia, não-
abundante na história da pintura, remete a uma célebre
passagem de Mateus 22,15-22:
“Os fariseus fizeram um conselho para tramar como apanhá-lo
[Jesus] por alguma palavra. E lhe enviaram seus discípulos,
juntamente com os herodianos, para lhe dizerem: ´Mestre
(…), dize-nos: é lícito pagar imposto a César, ou não?
Jesus, porém, percebendo a sua malícia, disse: ´Hipócritas!
Por que me ponde à prova? Msostrai-me a moeda do imposto.
Apresentaram-lhe um denário. Disse ele: “De quem é esta
imagem e a inscrição? Responderam: “De César”. Então lhes
disse: “Pois devolvei o que é de César a César, e o que é de
Deus a Deus””
A obra não apresenta um bom estado de conservação, em parte
devido a seus diversos deslocamentos e restaurações antigas.
Incluída (juntamente com uma perdida cópia de Flaminio
Torre) na célebre venda de 1746 a Dresden dos 100 melhores
quadros das coleções dos Este, duques de Ferrara e Modena,
foi ela restaurada em 1825 e sofreu graves danos na II
Grande Guerra, tendo sido interceptada pelo exército russo
quando da evacuação de Dresden pelos nazistas. Foi devolvida
ao Museu nos anos 1960.
Tiziano pinta-a para Alfonso d´Este, no âmbito de seu
studiolo e de uma precisa estratégia política. Filho
de Ercole I d´Este, irmão de Isabella d´Este (1474-1539) e
de Beatrice d´Este (1475-1497), Alfonso d´Este (1476-1534)
desposa Lucrezia Borgia (1480-1519) em 1502, segundo um
projeto imposto desde dezembro de 1500 por Alexandre VI e
Luís XII a Ercole I, que garante assim ao filho a manutenção
do ducado. Derrotando no front interno os dois irmãos que
conspiram contra ele, Alfonso é sagrado em 1505 terceiro
duque de Ferrara e de Modena.
Personagem não-irrelevante no tabuleiro político-militar
italiano dos três primeiros decênios do século, Alfonso é um
dos artífices da Liga de Cambrai contra Veneza (1509) e um
dos responsáveis maiores pela relativa vitória francesa na
mortífera batalha de Ravenna de 1512. Trata-se, acima de
tudo, de um adversário temível do papado: de Júlio II, que o
excomunga em 1510, a Clemente VII, que prolonga neste
aspecto a velha ambição pontifícia de absorver os Estados da
Romagna no domínio eclesiástico, e contra quem ele marcha em
1526-1527.
Emblema dessa independência em relação às pretensões
pontificais é o doppio ducato de ouro cunhado em 1515
com a efígie do duque (ALFONSUS DUX FERRARIAE III) e no
verso a cena do Tributo da Moeda com a inscrição: QUE
SUNT DEI DEO, alusiva à passagem de Mateus acima citada,
através da qual o duque se identifica com César.
Ver: http://www.mare.art.br/detalhe.asp?idobra=3655
No ano seguinte, em 1516, Tiziano pinta-lhe a presente cena,
para ornar os Camerini d´alabastro, em meio a quadros
de tema mitológico, segundo narra Giorgio Vasari na Vida de
Tiziano (1568):
Similmente nella porta d´un armario dipinse Tiziano dal
mezzo in su una testa di Cristo, maravigliosa e stupenda, a
cui un villano ebreo mostra la moneta di Cesare. La quale
testa et altre pitture di detto camerino affermano i nostri
migliori artefici che sono le migliori e meglio condotte che
abbia mai fatto Tiziano: e nel vero sono rarissime. Onde
meritò essere liberalissimamente riconosciuto e premiato da
quel signore, il quale ritrasse ottimamente con un braccio
sopra un gran pezzo d´artiglieria
“Assim também sobre a porta de um armário, Tiziano pintou um
Cristo da cintura para cima, com uma cabeça maravilhosa e
estupenda, a quem um vil judeu mostra a moeda de César. Esta
cabeça e outras pinturas desse camerino são, segundo nossos
melhores artistas, as melhores jamais executadas por
Tiziano. E da fato são raríssimas, razão pela qual mereceu
ser liberalissimamente reconhecido e premiado por aquele
Senhor, que ele retratou otimamente com um braço sobre uma
peça de artilharia”.
Esse armário guardava, provavelmente, as moedas e medalhas
antigas do duque. A exemplo do studiolo e da grotta
de sua irmã, Isabella d´Este, no Castelo de Mântua, o duque
pretendia decorar seus Camerini com pinturas dos maiores
mestres italianos, de modo a oferecer um panorama não apenas
da pintura ferrarense e veneziana, mas também de Florença e
Roma, de onde seu esforço em envolver nesta decoração os
grandes mestres da Itália central, dentre os quais Fra
Bartolomeo, Rafael e o próprio Michelangelo, que chega a lhe
desenhar em 1529 o perdido cartão de uma “Leda e o Cisne”,
conhecido por diversas cópias.
Luiz Marques
25/03/2012
Bibliografia:
1975 – P. Fehl, “The Worship of Bacchus and Venus in
Bellini´s and Titian´s Bacchanals for Alfonso d´Este.
Studies in the History of Art. National Gallery of Art, 6.
Washington, 37, p. 95.
1989 – J. Winkler, La vendita di Dresda. Modena: Ed. Panini,
p. 220.