A figura de S. Jerônimo penitente, com seus atributos usuais – a pedra com que golpeia o peito para afastar os pensamentos lascivos, a Bíblia e o crucifixo – é naturalmente apenas pretexto para a encenação de uma paisagem que, muito embora reminiscente de obras de pintores flamengos como Pieter Bruegel e Herri Met de Bles, il Civetta, é típica de Niccolò dell`Abate (1509 ou 1512 / 1571).
De fato, o pintor de Módena é um dos maiores cultores na pintura italiana – e, a partir de 1552, com sua transferência para Fontainebleau, também na pintura francesa – da paisagem panorâmica, senão ainda como gênero, ao menos como protagonista da representação.
Niccolò dell`Abate imerge suas paisagens em crepúsculos filtrados por uma misteriosa nebulosidade, dotando-as em geral de fantásticos efeitos atmosféricos. Ele recolhe e reelabora no contexto da extravagante corte de Ferrara a tradição nórdica dos horizontes longínquos e das extensões quase cósmicas, de Dürer a, como dito, Pieter Bruegel e a Civetta, ativo justamente nestes anos em Ferrara.
A fantasmagórica cidade banhada pelo golfo que se descortina ao longe é uma cidade antiga, com arquiteturas clássicas e um gigantesco pórtico que esposa a inteira curvatura do litoral. Pode-se cogitar que o artista, além de dar rédeas soltas à sua imaginação, almejasse representar um dos grandes centros do cristianismo primitivo, como Antióquia, cidade de resto não-litorânea, mas em cujo vizinho deserto Jerônimo passou, a partir de 374c., alguns anos em vida heremítica. Outra possibilidade é que ele aluda aqui, ainda que de modo genérico, ao golfo de Nápoles, tal como Bruegel em ao menos dois quadros, um dos quais a Queda de Ícaro*.
Luiz Marques
23/09/2010
Bibliografia:
1999 – D. Di Castro, A.M. Pedrocchi, P. Waddy, Il Palazzo Pallavicino Rospigliosi e la Galleria Pallavicini, Turim, Umberto Allemandi, p. 92