Sobre um fundo negro e abstrato, a composição articula quatro elementos: Eva, a Morte (com um de seus pés em casco fendido, atributo do demônio), a árvore do Bem e do Mal (ou da Vida e da Morte) e a serpente, que entrelaça em seu movimento circular estes três elementos.
O quadro distancia-se do tratamento normal do tema do Gênese pela intensidade do foco no instante do pecado, fora de todo contexto narrativo e paisagístico. Tanto quanto um discurso teológico-moral sobre o pecado original, ele propõe um ensaio sobre a sedução erótica.
De um ponto de vista doutrinário, Eva aparece aqui em sua habitual posição de primeira Pandora, responsável pela queda do homem na mortalidade e pela transmissão do mal à humanidade. Mas Hans Baldung (1485c.-1545) infunde na sua impudente nudez e em sua expressão libertina uma libido destituída de culpa e de limite, sem rival na história da arte até as personagens de Pierre Klossowski. O memento mori que aqui se desenha não se reduz, assim, a uma simples exortação à virtude, mas propõe uma experiência catártica da tentação ao pecado, não alheia à nova religiosidade reformista que vinha se elaborando contemporaneamente na Alemanha de Lutero.
De resto, esta “Tentação de Eva” não é um caso isolado na obra de Baldung. O repertório usual da iconografia bíblica e moralizante da tradição é transformado pelo pintor em uma reflexão sobre as relações entre o eros feminino e a morte. A temática é quase uma sua invenção e a ele o pintor retorna obsessivamente em suas pinturas e gravuras, tratando-o sempre com singular audácia.
Proveniente de uma família de médicos e juristas radicada em Estrasburgo (um Hieronymus Baldung era o médico pessoal do Imperador Maximiliano I), a condição social elevada de Baldung permiti-lhe uma liberdade de fantasia que inclui, por exemplo, a feitiçaria, a necromancia e o embate entre a vida e a morte.
Um exemplo da excentricidade de sua imaginação é “O Cavaleiro, a Morte e a Jovem”, do Louvre, talvez anterior a 1509, onde a jovem é objeto da disputa entre a morte e um cavaleiro que encarna aparentemente o amor e o princípio vital. Este pequeno mas admirável óleo sobre madeira (31 x 22 cm)parece ser um antecedente para a célebre água-forte de Dürer, “O Cavaleiro, a Morte e o Diabo”* (1513), espécie de expressão visual do gênero do Enchiridion, os manuais de exercícios espirituais do cristão.
Em 1971 esta “Tentação de Eva” era propriedade da galeria Thos Agnew and Sons e sua localização atual é desconhecida.
Luiz Marques
28/10/2010
Bibliografia
1971 – C. Whitfield, “Révélation sur une Tentation d´Ève”. Connaissance des Arts, 232, junho, pp. 72-81