(continuação do texto que acompanha a imagem principal)
Considerando essa pintura e os trabalhos de José Bonifácio e Carlos Taunay em seu Manual, a relação entre escravidão e desmatamento é um tema recorrente da crítica que se faz à preservação do meio ambiente.
A brutalidade do movimento dos machados e a indiferença dos negros em relação ao destino da floresta, na obra de Félix-Émile, tornam-se ainda mais evidentes por conta da presença, no quadro, de um único homem branco, que parece estar medindo forças com a imponente obra da natureza.
O horizonte onde estão as árvores derrubadas, na metade esquerda do quadro, deixa à mostra uma região montanhosa que faz lembrar as serras que cercam a cidade do Rio de Janeiro.
O cenário descortinado pela obra fica em um lugar elevado, acima do vale que se delineia ao fundo, local que, de acordo com o texto de Carlos Taunay, deveria permanecer intocado. O centro do quadro configura-se como a fronteira entre a floresta e os campos devastados pelo fogo e pelos machados dos escravos negros.
É nesse espaço que se acumulam os elementos cruciais da narrativa proposta pelo artista. Salta aos olhos, em primeiro lugar, a grande figueira, cuja frondosa copa ocupa quase toda a parte superior direita do quadro. Ela é como se fosse o “personagem principal” do drama. A seu lado, como se a estivesse amparando, aparece um pau-mulato, uma árvore cuja madeira era muito usada na fabricação de móveis.
A posição estratégica que as duas árvores ocupam na imagem confere-lhes um aspecto de resistência heróica. Um pouco mais à esquerda, já ocupando a área parcialmente desmatada, um riacho corre com dificuldade entre pedras e entulhos, exposto ao sol e ao vento, contrapondo-se ao leito oculto pela mata densa do rio à direita.
Entre a enorme figueira e o rio agonizante à esquerda, descortina-se uma estrada lamacenta por onde caminha um negro ao lado de um jumento com as costas arqueadas devido ao peso de sua carga.
A cena sugere uma narrativa dramática: escravos negros derrubam as matas nativas nos arredores do Rio de Janeiro, provavelmente para abrir espaço para um lucrativo cafezal.
Mas tão logo a mata é abatida, já é possível intuir consequências nefastas: a esterilidade do terreno, representado pelo aspecto espinhoso que ele adquire com a presença dos restos de troncos abatidos, a diminuição das águas expostas a céu aberto e a lama que corre pela estrada, como se fosse um rio traiçoeiro.
Visto sob esse novo ângulo, o quadro de Taunay parece adquirir um sentido menos abstrato e mais engajado politicamente. Também fica claro o significado da inscrição que acompanhou o quadro em sua primeira apresentação na Exposição Geral de 1843, composto provavelmente pelo próprio artista: “A desaparição dos mais belos exemplares do reino vegetal nos arredores da cidade ameaça a esta, segundo cálculos irrefutáveis, com diminuição das águas vivas e elevação do grau médio de calor, dois males reciprocamente ativos”.
Claudia Valladão de Mattos
21/02/2011
Bibliografia:
2001 – C. Taunay, Manual do Agricultor Brasileiro, São Paulo: Cia das Letras, 2001.
2002 – J.A. Pádua, Um sopro de destruição. Pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Zahar.
2009 – E. Dias, Paisagem e Academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas: Editora da Unicamp.
2009 – C. Valladão de Mattos, “Paisagem, Monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay”, in: A. Cavalcanti, C. Dazzi, A. Valle. (org.), Oitocentos. Arte Brasileira do Império à Primeira República. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes UFRJ, 2009, vol. 1, pp. 493-499.