“Registro inventarial: inv. n. 80
Outrora na coleção do cardeal Aldobrandini, a obra, típica 
da excentricidade poética do grande pintor de Ferrara, Dosso 
Dossi (1490-1542), passou em inícios do século XVII à 
coleção Borghese em Roma, junto com outras célebres telas 
conservadas no castelo dos Este em Ferrara. 
Ela representa Tubal-Caim golpeando com seus martelos uma 
bigorna, inspirado por um gênio alado. A seu lado, duas 
mulheres parecem representar figuras de Musas. Tubal-Caim 
encarna, aqui, a ideia das origens da música, consoante a 
seguinte  passagem do Gênese, 4, 17-22, em que se relata a 
descendência de Caim:
“”Caim conheceu sua mulher, que concebeu e deu à luz Henoc. 
Tornou-se um construtor de cidade e deu à cidade o nome de 
seu filho, Henoc. A Henoc nasceu Irad, e Irad gerou Maviel, 
e Maviel gerou Matussel e Matussel gerou Lamec. Lamec tomou 
para si duas mulheres: o nome da primeira era Ada e o nome 
da segunda, Sela. Ada deu à luz Jabel (…) O nome de seu 
irmão era Jubal; ele foi o pai de todos os que tocam lira e 
charamela. Sela, por sua vez, deu à luz Tubalcaim; ele foi o 
pai de todos os laminadores em cobre e ferro”” (Bíblia de 
Jerusalém).
Jubal evoca a palavra hebraica yôbel, trombeta, e 
Tubal é o nome de um povo do Mar Negro (Ezequiel, 27,13), 
região metalúrgica. Tubal-Caim remete à forma hebraica 
Qayin, o trabalhador da forja.
Os meio-irmãos Tubal-Caim e Jubal são, portanto, filhos das 
duas mulheres de Lamec, a quinta geração na sucessão de 
Caim, sucessão reminiscente da versão javista do Gênese. A 
rigor, Tubal-Caim e Jubal representam dois distintos 
momentos do despertar da música no homem pois, no relato 
bíblico, o primeiro teria sido apenas o inventor do trabalho 
sobre os metais, enquanto o segundo teria descoberto os 
instrumentos musicais. 
Ambos os personagens foram frequentemente confundidos e 
parece verossímil que a imagem de Tubalcaim vincule-se muito 
rapidamente às origens da música por uma espécie de influxo 
da lenda de Pitágoras, segundo a qual o sábio grego teria 
descoberto as relações entre os sons escutando um ferreiro a 
trabalhar com os seus martelos. 
Além, portanto, de suas diferenças mais aparentes, Pitágoras 
e Jubal/Tubalcaim têm em comum o fato de terem deduzido da 
gama sonora produzida por diversos martelos percutindo uma 
bigorna leis numéricas de proporção sobre a base das quais 
se constitui o sistema de consonâncias da harmonia musical.   
O mítico ferreiro bíblico com os seus martelos e sua 
bigorna, por tantos aspectos comparável a Vulcano, encontra-
se com efeito um pouco por toda a parte na arte do século 
XV, seja nas alegorias da música figuradas, por exemplo, por 
Apollonio de Giovanni antes de 1440, ou, ao final do século, 
por Pinturicchio, sobre as lunetas Borgia do Vaticano, seja 
ainda nas iluminuras ou gravuras de tantos manuscritos e 
incunábulos do Gênese. 
Seu prestigio parece permanecer intacto na arte italiana do 
século XVI, como demonstram o bronze de Maffeo Olivieri em 
Berlim, a água-forte de Sadeler de 1584 e esta obra de Dossi 
da Fondazione Horne de Florença.
A literatura chamou a atenção para os algarismos “”VIII”” e 
“”XII”” que se leem nos martelos, em referência às três 
consonâncias fundamentais da doutrina pitagórica da harmonia 
(ou seja, os intervalos consonantes de oitava, de quinta e 
de quarta, correspondentes à série numérica 6,8,9,12, 
combinada nas proporções: 12:6, 12:8 e 12:9). 
Os cânones musicais representados em formas circular e 
triangular foram identificados por Colin Slim como 
composições de Adrian Willaert e de Josquin Desprez. Eles 
assumem as formas geométricas puras e trinitárias da 
perfeição divina (sobre o triângulo, lê-se: “”Trinitas in 
uno””), em alusão à linguagem pitagórica. 
Se a estas indicações se acrescentam o caráter clássico da 
figura de Tubalcaim e o fato de que Willaert era por vezes 
chamado um “”novo Pitágoras””, pode-se facilmente concluir que 
Tubalcaim é concebido por Dosso Dossi como um “”alter-ego”” de 
Pitágoras. 
Não se trata de resto, de um fato isolado na iconografia 
desses anos. Ao contrário, no momento que as duas 
personagens personificam identicamente a descoberta das 
harmonias cósmicas da Musica Mundana, non surpreende 
reencontrá-los representados inclusive juntos, em vias de 
especular sobre o hexacórdio e sobre o número perfeito, como 
se observa na xilografia que ilustra uma página do 
Theorica musice (1492) de Franchino Gaffurio,  o 
primeiro de uma trilogia de tratados composto pelo grande 
teórico e amigo de Leonardo da Vinci em Milão.
Luiz Marques
03/04/2012
Bibliografia:
1968 – F. Gibbons, Dosso and Battista Dossi. Court Painters 
at Ferrara, pp. 92-94, 178.
2000 – L. Marques, “”Le origini della musica””. In, S. Ferino-
Pagden, Dipingere la Musica. Strumenti in posa nell´arte del 
Cinque e Seicento. Catálogo da Mostra. Milão, pp. 31-35.
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