Cimabue colhe o exato momento da morte do Cristo. O evento desencadeia a desordem cósmica dos anjos e o grito lancinante da Madalena, que lança impotente os braços para a cruz como para abraçar o cadáver.
Em contraponto com este agudo, ouvem-se as vozes graves de Longino e de outro soldado proclamarem, com os braços exortatoriamente erguidos, o sentido da imolação que acabara de lhes ser revelada.
O foco no instante de consumação do deicídio confere ao afresco uma unidade espaço-temporal de que apenas o senso antigo da tragédia tinha sido capaz. Exagera-se pouco ao dizer que a famosa unidade de ação, tempo e lugar foi inventada em pintura nesta cena, dois séculos e meio antes da entrada da Poética de Aristóteles na circulação sanguínea da cultura européia.
Deste ponto de vista, que é o da intuição das raízes antigas do drama sacro, Cimabue neste afresco da Crucificação de Assis aparece assim como um dos mais significativos elos visuais na trama pela qual a Antiguidade assegura sua permanência a continuidade no assim chamado mundo medieval.
Bem o percebe Roberto Longhi ao se referir à personalidade
bruciante e rapinosa (pungente e impetuosamente violenta) do artista, diríamos quase como o momento Sturm und Drang da arte moderna italiana:
“aquele seu aspecto de patriarca melancólico e grífico que rumina de novo pensamentos antiquíssimos e encena dramas velhos de séculos; que do grego calcificado de oriente, remonta ao latino polêmico de S. Jerônimo e sempre se exprime com uma sombria incendiada potência que é bem ocidental e não encontra parâmetro de tom moral senão na enérgica desolação de Nicolas de Verdun”.
Os afrescos do presbitério e do transepto da Basílica Superior de Assis, confiados na maior parte a Cimabue e a seu ateliê, estavam arruinados já na época de Giorgio Vasari (1550) e muitos deles sofreram uma alteração química que inverteu a relação entre claros e escuros, de modo que não-raro parecem hoje fantasmagorias em negativo.
Representam oito cenas da Vida de Maria na abside e doze cenas do Apocalipse e dos Atos dos Apóstolos nos transeptos esquerdo e direito.
Malgrado tudo, é possível ainda admirar nesta Crucificação, no transepto esquerdo (de quem olha para o altar), não apenas a primeira verdadeira encenação da Crucificação de Cristo, em um espaço amplo e pioneiro na pintura, mas talvez a mais dramática e rumorosa de quantas tenham sido pintadas na história da arte.
A datação destes afrescos, objeto de uma secular controvérsia, nutrida de parte a parte por convincentes argumentos, oscilou entre 1277-1280 (datas em que se inscreve o pontificado de Niccolò III Orsini, cujo emblema se vê na representação de Roma, no afresco de S. Marcos da abóbada do coro da basílica) e 1288-1292.
Retomando propostas de Cesare Brandi, Roberto Salvini entre outros, Luciano Bellosi (1998) fez convergir argumentos particularmente densos e coerentes em benefício de uma datação em torno do início do pontificado de Niccolò IV (1288-1292).
Aos pés da cruz, vê-se a figura ajoelhada de S. Francisco.
Luiz Marques
07/02/2010
Bibliografia:
1939/1947 – R. Longhi, Giudizio sul Duecento. Opere Complete. Volume VII, Florença, 1974, pp. 1-53.
1975 – E. Sindona, L´Opera Completa di Cimabue e il momento figurativo pregiottesco. Milão, Rizzoli, p. 100
1987 – L. Marques, La Peinture du Duecento en Italie Centrale. Paris, Picard.
1998 – L. Bellosi, Cimabue, Milão: Federico Motta Editore, p. 183